"Sonambulismo" existencial e o despertar da consciência!
- João Gabriel Simões
- Jul 15, 2019
- 8 min read
Updated: Jan 26, 2023
Quando prestamos atenção no nosso corpo vemos músculos, órgãos, partes que podemos pesar, medir e contar. Por outro lado, quando prestamos atenção na nossa mente o que vemos? Pensamentos, emoções, memórias, desejos. Podemos contá-los e mensurá-los como fazemos com os objetos físicos? Não! O que podemos fazer é deduzir o que se passa na nossa mente, a partir dos efeitos que ela gera no corpo – como, por exemplo, quando deduzimos o sentimento de vergonha de uma pessoa após vê-la ruborizar ao falar em público.
Toda dedução gravita na esfera do conhecimento probabilístico. Ou seja, a observação da linguagem corporal ou, mais profundamente, a observação das reações elétrico-químicas de um pessoa, por meio de instrumentos, não permite conhecer com precisão que tipo de afeto ou pensamento gerou tal e qual reação corporal, mas tão somente aproximações probabilísticas. Em outras palavras, nenhuma máquina pode determinar com exatidão o que você está pensando ou sentido, a partir da leitura de seus sinais vitais. Eletrodos conectados no seu cérebro podem mostrar que há uma maior ativação do seu córtex pré-frontal quando você está planejando alguma coisa, mas de modo algum podem mostrar sobre o que esse planejamento se trata e quais pensamentos estão passando pela sua cabeça naquele momento.

É por isso que o conhecimento da mente humana é um dos mais difíceis, pois não pode ser medido, pesado, contado e apresentado em fórmulas matemáticas infalíveis. É, portanto, subjetivo em grande escala.
A ciência e as suas “fotografias” da realidade
De forma didática, pode-se dizer que a ciência produz imagens, “fotografias” da realidade. Uma foto do centro do Rio de Janeiro de 100 anos atrás não corresponde a uma foto do mesmo lugar tirada hoje. Da mesma forma, teorias que eram utilizadas em séculos anteriores, podem não mais representar, de maneira satisfatória, a realidade atual. Portanto, vale sempre lembrar que quando a ciência confunde a realidade com as suas próprias teorias (fotografias) ela se torna dogmática e perde o seu rigor.
Enfim, o “sonambulismo” existencial
Diante do exposto, o fenômeno que eu passarei a explanar agora diz respeito ao momento histórico atual. Logo, não tomem isso como verdade absoluta, mas sim como um ponto de vista dentre outros.
O fenômeno é o sonambulismo existencial. Processo que se expressa na vida daquelas pessoas que entram, frequentemente, em um estado de torpor e semi-consciência quanto ao que acontece, em primeiro lugar, na mente delas e, em segundo, no mundo que as cerca. Um estado de auto-alienação e passividade existencial, que pode ser mascarado com uma multiplicidade de “vernizes” sociais.
De acordo com o sábio armênio Gurdjieff, em geral, as pessoas não querem trabalhar sobre si mesmas, isto é, se empenhar para desenvolver virtudes e superar seus pontos fracos; ao invés disso, buscam usar suas energias para levar os outros a servir seus desejos que, em grande medida, introjetaram, inconscientemente, do meio no qual vivem (OUSPENSKY, 1993).
O sujeito demasiadamente identificado com aquilo que ele gosta e não gosta, fechado em sua “ilha” de gostos e desgostos é capaz de inventar teorias, formar instituições e provocar guerras para afirmar os seus caprichos, que toma como próprios quando na verdade não os são. Desconhece que grande parte do conteúdo de sua alma é formado por forças, influências que são verdadeiras “colônias” do estado, das convenções sociais, da educação, da mídia, de intelectuais e da sua própria família - governando o seu “eu”. Quem colonizou a sua mente? Quem ou o que determina os seus limites? São perguntas desconhecidas para ele.
O sonâmbulo, enquanto dorme é guiado para lá e pra cá por impulsos que desconhece. Da mesma forma, quem está identificado com os conteúdos de sua mente é conduzido de um lado para o outro por forças que nem suspeita. É aquela pessoa que age sem se questionar, que está sempre reproduzindo as exigências de seu “ego“. Como volta muito pouco a atenção para si mesma (interocepção), mas muito para os "objetos" que visam seus caprichos (exterocepção), vive sem se conhecer, tal como uma máquina sem saber o que a move.
Espinosa (1992), filósofo holandês chamava esse estado - ou algo próximo a ele - de servidão humana. O sujeito que é escravo de seus afetos, pois desconhece suas causas e "modos operandi". Ou seja, não sabe e não quer saber o que motiva o seu agir. Sua consciência só abrange os “efeitos” e não as “causas” de suas ações e por isso sofre sem saber de onde vem seu sofrimento.
Em pleno século XXI, os exemplos desse sonambulismo são abundantes: no meio intelectual, estudantes e até mesmo professores que repetem de forma acrítica e dogmática as teorias que aprenderam; nas redes sociais, o compartilhamento frenético de notícias falsas, bem como a proliferação de discussões, nas quais, nem um dos envolvidos sabe realmente do que está falando; nas relações humanas, a objetificação dos corpos e a popularização de uma afetividade cada vez mais rasa, líquida e superficial.
Na relação com o meio ambiente, o "sonambulismo existencial" leva a um esquecimento quase que completo da necessidade de preservar e respeitar a "natureza", que para muitos cidadãos metropolitanos é tratada tal e qual uma “prostituta” e nada mais – como disse Tolstoi:
"Há quem passe pelo bosque e só veja lenha para a fogueira."
Em suma, em todas áreas da vida humana podemos encontrar exemplos que remetem ao que estou chamando aqui de sonambulismo existencial. Veremos em seguida, alguns passos para acordar desse estado de letargia.
O despertar da consciência
Sair desse sonambulismo existencial implica em um “despertar” da consciência. Nos movimentos espiritualistas da “nova era” se fala muito - de forma romantizada e mercantilista - do despertar da consciência. De certa maneira, deixando de lado seus excessos e confusões, não deixam de estar certos quando enfatizam a importância da conscientização das influências e forças que estão por trás dos nossos comportamentos. Como disse Gurdjieff, sem o conhecimento de si e a compreensão das funções e poderes que operam na “máquina” humana, seremos sempre joguete de influências que nos atravessam. Tal é também, guardado as devidas proporções, a visão de algumas linhas da psicologia que trabalham esse despertar da consciência sob outros aspectos (OUSPENSKY, 1989).
Primeira Etapa
Logo, coloco em relevo aqui o primeiro passo para sair desse estado de sonambulismo existencial que é o estudo de si. Conheça te a ti mesmo, essa frase do oráculo de Delfos na Grécia antiga, tão famosa na filosofia, não deve ser lida de forma simplista e banal. É necessário reconhecer a importância do estudo de si para o autoconhecimento não para, meramente, ter mais equilíbrio e uma vida mais tranquila, mas principalmente para atualizar – e isso implica em ter experiências – estados de consciência mais elevados, latentes em todos nós.
O filósofo Alemão Nietzsche (1999, p 3.) disse uma vez: "Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos - e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?". Com efeito, o desconhecimento de si é a regra para a maioria das pessoas e o próprio Nietzsche reconhecia isso. Muitos preferem utilizar as suas energias para satisfazer seus desejos e caprichos, em um modo de vida mecânico e previsível, ao invés de utilizá-las para mergulhar em si mesmos e descobrir “tesouros” inimagináveis.
Estudar a si mesmo exige disposição e coragem, pois o que iremos encontrar nem sempre é agradável. Por isso essa fórmula nem sempre foi recomendada a todos. Nem todo mundo está preparado para o “combate” - contra si mesmo - que surge no processo de autoconhecimento. Visualizar as próprias contradições e mecanismos de defesa pode ser uma experiência dolorosa para quem sempre viveu em um estado de sonambulismo e alienação. Imagina só ter de mudar de ideia depois de décadas de dedicação a uma teoria ou crença que tenha rendido prestígio, riquezas e status social? A vida é complexa e o “verdadeiro” estudo de si exige mudanças de atitude e posicionamento perante ao que nos acontece.
Segunda Etapa
Após ter entendido a importância do estudo de si, que conduz ao autoconhecimento, o interessado pode adentrar em uma segunda etapa que é a visualização e o discernimento em si de suas tendências positivas ou negativas, ou os aspectos funcionais e disfuncionais de seu “existir” atual. Tal discernimento não surge do nada e pode ser auxiliado pelo estudo comparado das religiões e filosofias. No “mundo” filosófico cristão, especificamente na Suma teológica de São Tomás de Aquino (2016), pode se encontrar um estudo sobre as virtudes e vícios humanos. Na filosofia de Espinoza (1999), em seu livro Ética encontramos outra fonte de sabedoria, quando este fala das paixões humanas. Em Platão, Aristóteles e Sêneca também podemos vislumbrar esse estudo, que é por eles tratado com grande importância. Na psicologia moderna, em suas várias escolas, também encontramos fundamentos para um estudo dos aspectos funcionais e disfuncionais de nós mesmos.
Terceira Etapa
Após criar uma base de estudos - se apoiar no ombro dos “gigantes” – e de muita auto-observação, um terceiro estágio pode ser alcançado. Em grande parte das tradições filosóficas e metafísicas, o desenvolvimento de virtudes e a superação de vícios está associado a determinados fins. Nesse sentido, as virtudes são meios para uma finalidade maior. Para alguns filósofos esse fim maior é o conhecimento da nossa verdadeira natureza; para os cristãos é a beatitude; para os budistas o estado de iluminação “espiritual” chamado Satori e assim por diante. Embora a ciência não possa validar – com seus recursos atuais – a realidade desses fins últimos, ela não pode negar a sua possibilidade, nem muito menos deixar de reconhecer os benefícios do desenvolvimento de virtudes e da superação de modos disfuncionais de se portar no mundo. Por exemplo, quando nos desfazemos de certos preconceitos ficamos mais abertos ao conhecimento e a nossa capacidade de conhecer se intensifica; quando desenvolvemos a virtude da determinação, nos tornamos mais capazes de realizar os nossos sonhos; e quando nos tornamos mais empáticos, melhoramos as nossas relações sociais.
Nessa etapa, passamos a perceber dentro de nós, uma força que eu chamo de vontade de transcendência, que nos impele a buscar os meios e as vivências necessárias para atualizar o nosso potencial e superar quaisquer tipos de limitações. Ao contrário do que alguns podem pensar, essa vontade não implica em condenar o presente, em prol de um futuro imaginado, mas pelo contrário, em valorizar o momento presente, o aqui e agora, como porta de acesso a transcendência de si. A vontade de transcendência surge principalmente por meio do estudo de si. É também um efeito de determinadas experiências que nos permitem experienciar a nossa consciência de outras maneiras. Sonhos lúcidos, meditação, rezas e certos exercícios mentais que podem produzir estados alterados de consciência, completamente desconhecidos para quem vive fechado em um modo de vida obnubilante e "quadrado".
Sem entrar na “selva” de elucubrações sobre as experiências transcendentes que envolvem diversas polêmicas e controvérsias, vale, todavia, assinalar brevemente que a psicologia contemporânea, através de estudos conduzidos por psicólogos como Williams, M.; Penman, D. (2015), vem descobrindo uma série de benefícios, decorrentes da prática de métodos de meditação orientais, que são chamados hoje, no âmbito científico, de técnicas de atenção plena (mindfulness). Técnicas que nos ajudam a acessar outras camadas da mente humana, assim como, a sentir e contemplar a realidade, muito mais do que julgá-la e limitá-la ao tamanho das nossas “gavetas” conceituais.
Conclusão
Em conclusão, o sonambulismo existencial é apenas um “rótulo” para designar, simbolicamente, um processo que muitos vivenciam no planeta terra atualmente. Suas causas e consequências transcendem o escopo deste pequeno artigo que teve como objetivos apontar a existência desse tipo de sonambulismo, exemplificá-lo e esboçar um caminho para um possível início de despertar – a partir de um ponto de vista psicológico, filosófico e espiritual.
Por: João Gabriel Simões, Psicólogo
Refêrencias:
OUSPENSKY, P.D. Fragmentos de um ensinamento desconhecido. São Paulo: Pensamento, 1989.
ESPINOSA, B. Ética. Lisboa: Relógio d’Água, 1992.
NIETZSCHE, Friedrich, Genealogia da Moral (tradução de Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras , 1999.
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma teológica: volume 1. Campinas: Ecclesiae, 2016.
Williams, M.; Penman, D. (2015). Atenção Plena: como encontrar a paz em um mundo frenético. Rio de Janeiro: Sextante
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